Primeira Reunião do Plenário da Estrutura de Coordenação da Rede de Museus e Coleções Visitáveis dos Açores | Museu do Vinho dos Biscoitos, Casa Agrícola Brum, 1.6.2018

Os passos recentes

Na tarde do dia 1 de junho de 2018 aconteceu a primeira reunião do Plenário da Rede de Museus e Coleções Visitáveis dos Açores (RMCVA)

Cerca de quinze dias antes, a 17 de maio, a Comissão Executiva tivera a sua primeira reunião, de instalação, digamos assim, na Casa do Arcano, um dos núcleos do Museu Municipal da Ribeira Grande.

Estiveram presentes, no Plenário, os nove museus que, por enquanto, constituem a Rede: Museu de Santa Maria, Museu Carlos Machado (Ponta Delgada – São Miguel), Museu Municipal da Ribeira Grande (Ribeira Grande – São Miguel), Museu do Pico, Museu Francisco de Lacerda (São Jorge), Museu da Horta, Museu da Graciosa, Museu de Angra do Heroísmo e Museu das Flores.

O encontro realizou-se nas instalações do Museu do Vinho dos Biscoitos, da Casa Agrícola Brum (um futuro mais que provável parceiro), e nele foram aprovados o regulamento interno do próprio Plenário, a proposta de Visão, norteadora da ação e atitudes futuras da Rede, e discutidas formas de atuação.

Temos, portanto, já devida e formalmente constituída, uma rede de instituições e espaços dedicados à preservação, valorização, conhecimento, partilha e divulgação do património móvel existente nos Açores.

Quem andar por estes caminhos do património cultural, nos Açores, desde há anos, dirá que “apareceu mais uma rede!”, porém, se já nem a criação legislativa (Dec. Leg. Regional 25/2016/A de 22 de novembro) é parecida, a semelhança com outras experiências anteriores termina aqui. Vejamos.

 

As falsas partidas anteriores

De facto, se quisermos, podemos dizer que existiram, nos Açores, duas tentativas anteriores de criação do que se pode querer entender por uma rede, pois nenhuma o era, de facto.

A primeira surgiu ainda antes de 1980 e era, sobretudo, um sistema de comando, que instalou “casas de etnografia” em certas ilhas, colocando-as na dependência dos museus maiores, situados nas antigas capitais de distrito, os “museus regionais”. É fácil perceber que este sistema, com objetivos muito circunscritos, “condenava” algumas ilhas a apenas mostrar o que fosse entendido como “etnográfico” (e logo aí seria uma complicadíssima discussão…), enquanto outras, onde se situavam as então cidades, estavam destinadas a ter um tipo de exposição mais eclético de conteúdos.

Rapidamente desapareceram as “salas” e, em seu lugar, surgiram os “museus de ilha”, solução acrescida de um novo conceito: os museus dependentes da administração regional deviam ser temáticos e abrangentes, e o tema deveria ser tratado apenas em determinada ilha. Na Graciosa seria o vinho, no Pico a baleação, em São Jorge o queijo, etc.

Se esse entendimento podia proporcionar uma visão de arquipélago, abrindo os horizontes ao trabalho possível em cada museu, levava à exclusão de largas faixas da identidade cultural das outras oito ilhas, onde o tema não seria tratado, o que levou a uma resistência passiva enorme, mantendo, ao mesmo tempo o ecletismo universalista reservado a três museus e o regionalismo “etnográfico” distribuído tematicamente pelos outros.

As questões da identidade, do relacionamento global, do posicionamento estratégico, continuaram a ser pouco tratadas, e aquilo a que gosto de chamar georreferenciação cultural dos Açores só foi abordado parcialmente, ou através de algumas participações em grandes exposições temporárias no exterior, para onde foram certas peças interessantíssimas, durante meses, levadas a “passear”.

No meio de tudo isso faltava, bastante, um esforço, sincero e continuado, na construção de um sentido de grupo e de comunidade, seja entre os colegas que trabalham em funções relacionadas com património cultural ou natural, seja entre as próprias ilhas, num entendimento mais abrangente. Cada ilha continuava a viver sobre si e por causa de si, faltando um sistema de relacionamento, em liberdade e com circulação nos dois sentidos.

Além do mais, o esforço de salvaguarda, valorização e divulgação da herança cultural, nos Açores, permanecia baseado nas estruturas pertencentes à administração pública regional, deixando de lado o que outros tentavam fazer, ao nível das autarquias, forças armadas, igreja católica, etc., por exemplo, e nada tendo em conta, antes vendo com desconfiança, os muitos particulares que, de facto, olham os valores patrimoniais com carinho e interesse.

 

Ver as coisas de outro modo

Por um lado, era urgente e necessária outra forma de ver, que criasse, entre as ilhas, a harmonia que tem faltado, colocando as comunidades e os seus membros como participantes, relevantes e ativos, no conjunto dos processos de identificação, construção, reflexão, usufruto, partilha, dos valores culturais e patrimoniais.

Por outro lado, estamos numa época em que o financiamento fácil deixou de existir, em definitivo, pois, se quiserem ter luz verde no âmbito dos programas europeus, as questões de identidade e herança necessitam apresentar, agora, mais do que “obra feita”, e as propostas de investimento têm de ser claras, planeadas e justificadas.

A “chave na mão” deixou de poder ser apresentada, nos relatórios, como ponto final. Agora, por exemplo, nos museus e afins, não é uma sala que interessa, mas, sim, perceber, em números, até que ponto as coisas e as pessoas ficaram diferentes, porque os acontecimentos, nesse espaço, assim fizeram acontecer.

Foi por isso que, em 2015, foi posto em marcha um inquérito, no sentido de se ficar a saber quantos, quais, onde, com que dinâmicas, eram os espaços, grupos e pessoas, dedicados, das mais diversas maneiras, aos valores culturais e patrimoniais.

Reflexo desse trabalho é a visão dos Açores que, no Plano Operacional Açores 2020, aparece assim descrita:

Uma paisagem, um ambiente e uma vivência distintiva, suportadas em espaços urbanos qualificados, num património natural e cultural diferenciado e reconhecido internacionalmente, com respostas eficazes na proteção da biodiversidade e dos ecossistemas e na adaptação às alterações climáticas.

 

Muito mais que um capricho

Os Açores são nove ilhas, quase duas dezenas de municípios, e dezenas e dezenas de freguesias, por sua vez feitas de muitos e muitos lugares e recantos.

O inquérito, atrás referido, permitiu perceber que múltiplas entidades, públicas e privadas, ligadas ao governo, às autarquias, à diocese, às forças armadas, juntas de freguesia, grupos folclóricos e, até, colecionadores privados, reúnem, guardam e se interessam por peças e acervos, em espaços nem sempre de grande qualidade, mas demonstrando um interesse, um gosto e uma disponibilidade a todos os títulos notável.

Entidades e gente que é preciso envolver e respeitar, no seu esforço, no seu gosto, no seu amor, porque não, dizê-lo assim!

Olhando para as tentativas anteriores percebe-se, por um lado, que se tratava, no fundo, de uma rede governamental e governamentalizada, onde a perspetiva de cadeia de comando em pirâmide estava muito presente e, por outro, que todo esse “mundo” de entidades, grupos e gente sobrevivia, apoiado aqui e ali, das mais diversas formas, mas sem uma estrutura que, verdadeiramente, integrasse o seu esforço e o seu gosto e desse vigor ao seu potencial.

O que agora nasce, é, por isso, muito mais que um capricho. Significa que se assume, como princípio, que é preciso envolver todas essas entidades e pessoas, valorizando o seu esforço, levar os museus mais instituídos e institucionais a perceberem que são parceiros necessários, mas não exclusivos, e motivou o alargamento da ideia de rede muito para lá dos limites habituais e das instituições tradicionalmente envolvidas.

Se o fim do financiamento fácil e a necessidade de uma nova perspetiva já tinham criado uma grande pressão sobre quem lida com o património cultural, eis que chegou então, mais recentemente, o turismo, com objetivos que não são, necessariamente, os mesmos, e para o qual, nem sempre, ou quase sempre, a problemática cultural e de identidade é de interesse marginal.

Se a realidade e o papel dos espaços museológicos já eram questões complicadas antes, tornaram-se ainda mais, sobretudo pela pressão exercida por setores da economia ligados à visita e permanência temporária de gente, vinda sabe-se lá de onde, mas interessada em conhecer os Açores, e que precisa e quer salas abertas, coleções visitáveis, muitas peças e lugares disponíveis e bonitos, para visitante ver.

Esta Rede tem, por tudo isso, um duplo papel a desempenhar.

Por um lado, ser, entre nós, a âncora material e permanente da construção, revisão, discussão, visita, análise – o que se quiser, em suma – da identidade Açores, em liberdade e em comunidade, perante o embate, não só da comunicação global e instantânea, mas, também, dos grupos de visitantes.

Por outro, ser membro, ativo e participante, da relação entre a comunidade habitante e a comunidade visitante, evitando que uma e outra se afastem e se sintam mutuamente estranhas e desligadas e garantindo que a cultura tem um papel relevante no seio da economia relacionada com o turismo.

Simplificando, a rede deve ter três eixos de ação:

Garantir o apoio, a formação e a qualificação a todos os que trabalham ou se relacionam com património móvel;

Garantir que objetos e coleções têm futuro e são apreciados e estudados;

Garantir que habitantes e visitantes usufruem e partilham esse património, e o usam na reflexão sobre o seu presente e na construção do seu futuro.

Criada e “instalada” a Rede, importa ampliá-la, rapidamente, e consolidá-la, para que possa resistir a ventos e a marés, fazendo funcionar os seus órgãos: Plenário e Comissão Executiva.

Uma página própria na Internet está a ser ultimada e já recebemos pedidos de adesão de diversos futuros parceiros, como sejam do Museu Militar dos Açores, do Núcleo Museológico da Base Aérea 4, do Museu do Carnaval, do Museu do Tabaco, do Museu do Vinho dos Biscoitos, do Tesouro da Sé. Alguns colecionadores particulares também já manifestaram o seu interesse. Todos são bem-vindos.

A Comissão Executiva irá visitar, elaborar relatórios, sugerir caminhos, ajudar a preencher, positivamente, os requisitos de qualificação, identificar necessidades de formação. Ajudar e apoiar são palavras fundamentais aqui, sempre!

O Plenário irá, depois, credenciar e certificar esses novos parceiros, entre museus e coleções e, sobretudo, todos iremos procurar construir um espírito de colaboração, através da cooperação técnica e de exposições globais e virtuais, organizadas de Santa Maria ao Corvo.

A cultura faz-se em partilha, em troca, em aprofundamento de saberes e sentires. Longe de retirar valor a uma qualquer ilha, acrescentar valor a ela e a todas as outras e aprofundar a nossa noção de identidade comum e a nossa cultura.

Deixo-vos um exemplo: Falemos de Pão! Quantos tipos de pães, quantos cereais, quantos tipos de substitutos de pão, quantos tipos de fornos, que formas de preparação, que razões, que origens, que semelhanças com outros, para lá do horizonte? Se cada parceiro, em cada ilha ou em cada lugar da ilha, estudar e contar a sua história, se disso tudo se fizer um catálogo, se isso for visitável durante alguns meses e ficar, depois, em permanência, disponível na Internet, não será interessante? É que existem múltiplas formas de abordar a mesma questão e enriquecer o nosso trabalho e o dos outros.

Alguém que conheço disse, um dia, que tínhamos de deixar de ser eucaliptos. Concordo, em absoluto. Temos de deixar de ser eucaliptos (que secam o que existe à sua volta) ou alfaces da horta (todas iguais). Uma boa floresta está cheia de verdes diferentes e de espécies diferentes, e convivem e competem entre si. O resultado é que uma floresta dessas resiste muito mais e melhor a qualquer adversidade.

É disso que precisamos, uma Rede assim eu quero!

Texto: Francisco Maduro-Dias | Coordenador da Comissão Executiva da Rede de Museus e Coleções Visitáveis dos Açores

Fotos: Cristina Brum